Família – Histórias Curtas, II

Histórias Curtas – episódio 2

Fantasia, steampunk,

Já fazia três meses que estávamos em Opala, a maior cidade industrial de todos os reinos. Saídos de Malaquita, a principal área agronômica de todo o continente, era difícil para mim e para meus pais nos acostumarmos com toda a fumaça no horizonte vermelho da cidade — uma imagem enferrujada e suja de óleo de pistão, como todo o resto desse maldito lugar. 

Infelizmente para mim, este também era o novo centro comercial de Cinco Cidades. Era aqui que meu pai, pioneiro na utilização de máquinas a vapor na agricultura, deveria estar. Deixamos para trás três dos meus irmãos mais velhos e duas irmãs — somos uma família bem grande — e trouxemos conosco somente esse pitoquinho de gente, que agora está esparramado no tapete em frente à lareira. 

“Você vem, Ângela?”, mamãe perguntou. 

Ergui os olhos e meus ombros saltaram quando eu encarei uma versão muito detalhada dos olhos castanhos de Mamãe. Tirei meu supernóculos e o pousei no colo, junto com meu ponto-cruz. Mamãe, muito mais do que qualquer um de nós, parecia sentir falta do que tivemos que deixar para trás.

“Pensei que fôssemos descansar hoje. É domingo, esqueceu?” Esfreguei os olhos com os dedos, até eles se acostumarem com minha visão normal outra vez.

Mamãe ergueu uma sobrancelha e puxou seu xale, ajeitando-o em volta dos ombros. Ao invés de seguir a última moda em Opala, com suas muitas tiras de couro, cartolas e óculos de aviador, mamãe preferia as boas couraças que usávamos em Malaquita, mesmo que seu visual interiorano destoasse por completo do que um morador da cidade grande deveria usar.

“Não me lembro de ter feito acordo nenhum”, ela disse.

Suspirei, rolando os olhos. 

“Escute, mamãe. Domingo passado foi cansativo o suficiente. Você sabe o quanto eu adoro fazer caminhadas e ficar ao ar livre, pisando em poças de água, deixando meus cabelos com cheiro de fuligem e sujando minhas botas nas muitas poças de lama e nojeira que—”

“Você está sendo irônica…”

“É claro que sim!”

“…Com a sua mãe?”, completou em tom pergunta, estreitando os olhos. 

Apertei os lábios, encarando-a em silêncio. Só a Deusa sabe em quantas enrascadas eu já me meti por culpa da minha língua afiada. Pigarreei e tentei lhe oferecer uma risadinha constrangida. 

“Ora, mamãe, mas é claro que… veja bem, considerando o tempo e a posição da lua no céu… e também a umidade do ar, o cheiro de terra molhada e a textura do vapor na janela…”

“Ângela!”

“Mamãe?”

Ela não respondeu. Mamãe franziu as sobrancelhas e caminhou a passos leves até o hall de entrada. Ela apanhou alguma coisa ao lado do aparador. Abriu portinhas, puxou capas, fechou fivelas. Quando voltou à minha frente, Mamãe tinha um desafio nos olhos, um escudo nas costas e uma espada longa presa na cintura.

“Vou perguntar outra vez, Ângela. Você vem?” Completando suas palavras, me entregou meu arco e aljava. 

Bufei, deixando as costas baterem contra o encosto da poltrona. Coloquei meu ponto-cruz com cuidado no braço da poltrona e me levantei devagar, sentindo os ossos das costas estalarem. 

“Nós duas precisamos do exercício, querida. Além disso, Opala tem duas vezes o número de criminais que Malaquita tinha… quem você acha que vai fazer alguma coisa para impedi-los?”

Fiz uma careta, grunhindo enquanto passava o arco por um braço, prendendo-o nas costas.

Nós vamos, aparentemente.”

“Isso.” Com um sorriso largo, Mamãe me deu um beliscão orgulhoso na bochecha e se virou para a porta de entrada, saindo por ela sem esperar. “Agora vamos. Li no jornal da manhã que alguns membros da adaga oculta atacaram outra joalheria na noite passada e que saíram sem levar nada — exceto um pequeno colar de cobre com o símbolo de Tau engravado.” Ela estreitou os olhos e se virou em minha direção sem conter a animação em sua voz. “Você sabe o que isso significa, Ângela?”

“Ugh.” Esfreguei o rosto com ambas as mãos. “Ah não. Outro necromante não!”

Mamãe soltou uma risadinha e se inclinou para soprar um beijo para minha irmã mais nova. Depois, ela saiu pela porta de entrada, repetindo — de novo e de novo — as regras de segurança em uma luta contra mortos-vivos. 

Suspirei e corri para o fora sem conseguir conter um sorriso. 

“Lembra do último necromante que enfrentamos?”, perguntei com uma risadinha. 

“Como poderia esquecer? Seu irmão ficou com cheiro de vômito de zumbi por semanas!”

Rimos juntas, andando lado a lado pelas ruas estreitas.

Já fazia três meses que estávamos em Opala, a maior cidade industrial de todos os reinos. Mamãe, mais do que todos nós, sentia falta do que tínhamos e de nossas rotinas em Malaquita… mas nossa família ainda estava unida, ainda que não fisicamente. 

E isso era tudo o que importava.

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